O peso da nova regulação do Bacen: o que muda para o setor cripto brasileiro

Nas últimas semanas, o Banco Central divulgou as resoluções 519, 520 e 521, que agora direcionam o mercado brasileiro de criptomoedas de forma definitiva. As normas encerram um período longo de incerteza regulatória e inauguram uma fase marcada por maior formalização, regras rigorosas e supervisão direta sobre temas sensíveis, como privacidade e transações internacionais.
Esse movimento surge após dois anos de consultas públicas, debates com profissionais do setor e um cenário de preocupação crescente com segurança digital. Durante esse período, o Pix enfrentava ataques, os bancos lidavam com fraudes e as stablecoins ganhavam espaço como alternativa rápida para envio de recursos ao exterior. Nesse contexto, o Banco Central trabalhou para criar um marco regulatório capaz de integrar o universo cripto ao sistema financeiro tradicional.
Como funcionava a regulação antes das novas resoluções
Até então, o setor operava com base no Marco Legal dos Criptoativos, aprovado em 2022. A lei definiu princípios gerais, classificou crimes envolvendo ativos virtuais e delegou ao Executivo a escolha do órgão regulador, que se tornou o Banco Central. No entanto, o mercado seguia sem regras específicas sobre capital mínimo, proteção patrimonial, critérios de listagem, diretrizes cambiais ou padrões de reporte. Existia reconhecimento legal, mas faltava detalhamento prático.
Essa lacuna criou um ambiente híbrido. Empresas e usuários tinham autorização formal, mas conviviam com pouca clareza operacional. A segurança jurídica não era suficiente para garantir previsibilidade. As novas resoluções surgem justamente para preencher esse espaço vazio.
O que dizem as novas resoluções
As três resoluções formam um conjunto integrado, mas cada uma aborda um pilar distinto do setor.
A Resolução 519 trata do regime de licenciamento das empresas que trabalham com ativos virtuais. Ela apresenta regras de governança, controles internos, segurança, prevenção à lavagem de dinheiro, transparência e auditorias. O texto também determina a segregação patrimonial como obrigação, garantindo que os recursos das empresas não se misturem aos dos clientes. Além disso, exige comprovação de reservas.
A norma ainda estabelece níveis altos de capital mínimo. Os valores podem se aproximar de R$ 37 milhões, variando conforme a atividade exercida. Esse requisito aproxima o setor do padrão bancário e cria uma barreira significativa para novos entrantes.
A Resolução 520 regula operações internacionais e enquadra o uso de criptoativos no regime cambial. A partir dela, remessas feitas com stablecoins passam a ser tratadas como operações equivalentes ao câmbio tradicional. Assim, ficam sujeitas a controles e exigências de informação. Embora a medida adicione proteção institucional, ela também restringe a relação entre empresas brasileiras e prestadoras estrangeiras que não possuam autorização do Banco Central. Essa limitação reduz a liberdade dos usuários que preferem plataformas internacionais.
Por outro lado, a Resolução 521 determina quais dados as empresas devem registrar e enviar ao Banco Central. Até operações envolvendo carteiras autocustodiadas passam a exigir informações suficientes para identificação via análise on-chain. A norma amplia a capacidade de supervisão do regulador, embora também aumente o risco de exposição dos usuários a vazamentos, já que parte dessas informações já é exigida pela Receita Federal desde 2019. Agora, duas bases sensíveis e volumosas serão mantidas por órgãos distintos.
Aspectos delicados dessa nova regulamentação
A mudança mais significativa envolve o tratamento das stablecoins. Ao integrar essas operações ao sistema cambial, o Banco Central passa a tratar transações internacionais como operações de câmbio. Embora a incidência de IOF ainda dependa da Receita Federal, o novo enquadramento facilita uma possível tributação futura. Esse mecanismo funciona também como ferramenta de controle de capitais, pois impede que parte relevante das remessas internacionais ocorra fora do alcance do Estado.
Outro ponto sensível é o capital mínimo exigido. Embora aumente a segurança e afaste empresas pouco preparadas, esse requisito dificulta o surgimento de empresas pequenas e médias. Assim, o mercado tende a se concentrar em instituições já consolidadas, o que pode limitar a inovação em um setor que historicamente avançou com a entrada constante de novos players.
A situação das empresas estrangeiras também merece atenção. O Artigo 91 da Resolução 520 torna o acesso a exchanges internacionais mais difícil caso essas empresas não busquem autorização do Banco Central. Esse cenário altera a trajetória natural dos usuários que preferem plataformas estrangeiras devido ao volume, variedade ou liquidez.
A coleta ampliada de dados é outro ponto delicado. À medida que mais informações são armazenadas pelo Estado e estruturadas de forma detalhada, cresce o risco para os usuários em casos de brechas de segurança. O histórico brasileiro de vazamentos massivos reforça essa preocupação.
Mas nem tudo são notícias ruins
Apesar das controvérsias, o pacote regulatório traz avanços importantes, e a exigência de segregação patrimonial talvez seja o mais significativo. Na prática, os recursos dos clientes devem permanecer separados dos recursos da empresa. Esse ponto é crucial porque impede práticas que, no passado, levaram ao colapso da FTX.
Para quem não acompanhou a época, a FTX utilizava depósitos dos usuários como garantia para empréstimos, investimentos paralelos e até despesas pessoais. Todo esse movimento ocorreu sem autorização e foi possível pela ausência de segregação patrimonial. A utilização indevida de bilhões de dólares levou a um dos maiores escândalos financeiros recentes.
Outro avanço essencial é a comprovação de reservas. Esse processo demonstra, de maneira auditável, que a empresa realmente detém os ativos que declara custodiar. A prova de reservas funciona como um espelho das carteiras e impede que a empresa opere de forma alavancada ou utilize fundos destinados a saques imediatos.
Esses dois pilares — segregação patrimonial e comprovação de reservas — formam um conjunto mínimo de segurança. Eles reduzem riscos sistêmicos, aumentam a confiança do usuário e evitam que o ambiente brasileiro repita casos como o da FTX. Além disso, o fato de o setor deixar oficialmente de ser considerado “não regulado” tende a atrair novos usuários e fortalecer empresas que já atuavam com seriedade. Assim, todo o ecossistema se beneficia.